Bonfim

Um blogue de vitorianos

sábado, setembro 17, 2005

O adepto do Vitória

Não há nada mais básico que um adepto de futebol. Não falo do adepto em todos os momentos da sua vida, mas simplesmente do curto período de 120 minutos que rodeia um jogo de futebol importante (90 do jogo, o resto para confraternizar e digerir). O adepto é, momentaneamente, um ser básico e irracional, um animal instintivamente virado para um objectivo, na companhia dos da sua estirpe.
No entanto, apenas no futebol, e nos grandes adeptos de futebol (que já não existem), se dá o fenómeno a que chamamos de lealdade. Não da lealdade ao hooliganismo (gente que liga pouco ao jogo), mas ao clube. O futebol é um mundo diferente daquele em que impera a vontade individual. Na verdade, o futebol é o único sítio em que a despersonalização do homem, e a sua introdução nas massas, se dá correctamente e com um efeito saudável. E que adeptos mais obstinados existiram que os meus antepassados, sempre apoiantes do Vitória de Setúbal?

Contou-me, em tempos, o meu avô, uma história que me marcou para sempre. Reza, então, a minha genealogia que, na década de 1940, um seu primo jogava no Vitória e era muitíssimo cobiçado por todos os outros clubes, sendo o pretendente mais azougado o Futebol Clube do Porto. Ao que parece, o então jovem extremo-direito sonhava, como qualquer «provinciano de Setúbal» de outros tempos, em jogar num clube onde pudesse ser bem sucedido, e onde pudesse impressionar a família. Nada melhor lhe poderia ter sucedido numa altura tão moralmente caótica: o Porto «convidava-o» a jogar por eles. O jovem nem pensou. Não precisava. Era o que queria. Saindo dos escritórios do clube, voltou a casa. Ora, deve saber o leitor mais aficionado que o futebol, antes, tinha muito mais a ver com uma cidade do que hoje tem. E, em Setúbal, quem não fosse do Vitória era até olhado de soslaio no café, no banco, no barbeiro, nas ruas...
A primeira coisa que fez ao chegar a casa foi informar a família da decisão. Por outras palavras, empenhou-se na tarefa de revelar ao pai a sua decisão. «É o meu maior desejo», pensou. O pai dignou-se a ouvir o que o imberbe filho lhe parecia ansioso por contar. O jovem disse: «Vou jogar para o Porto». Aí o pai levantou-se, de um salto, do cadeirão de madeira e, com ar sereno mas militar, deu dois passos em direcção ao filho. Com um só movimento rápido e seco, deu uma bofetada ao filho. «Tu do Vitória não sais!». Naquela bofetada caíram a ambição, a inocência e a ?deslealdade?. Era um pequeno e modesto povo na palma da mão. O jovem acabou por nunca jogar noutro sítio senão no Vitória de Setúbal, para grande honra do pai.

Outros tempos, outras histórias. Mas, sem dúvida, o mesmo Vitória.


*(texto de 2/4/2004 adaptado)